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domingo, 6 de maio de 2007

No mar da tranqüilidade


The Sea At Fecamp - Oil on canvas - 1881 - Monet

À beira da praia, um jovem de sessenta e quatro anos admira as ondas, o movimento do mar e olha a areia se desvanecendo com a força do vento.

Uma visão de nostalgia.

Sua casa é simples e bem localizada em um lugar pouco degradado – por ser ainda pouco conhecido e de acesso difícil.

Um olhar perdido no horizonte de boas lembranças. Lembra-se das mulheres que teve, das alegrias que proporcionou aos outros, das risadas, das conversas furtivas. De nada parece ser o homem que deveria ser - um sujeito amargurado pelas peças que a vida lhe pregou. Aos quatro anos de idade foi violentado por um maníaco. Aos nove sofreu grave acidente que o deixou impraticável para vários esportes, em especial ao que mais gostava a ginástica olímpica. Com doze foi induzido pelas más companhias a consumir drogas, preso aos treze em uma casa de recuperação se submeteu a várias provações, dentre elas a fome, o frio – que lhe trouxe junto uma pneumonia que quase o matou. Solto aos dezesseis, decidiu recuperar o tempo perdido, estudou muito e conseguiu completar seu segundo grau à custa de muito esforço.

Era inteligente para os estudos, mas não tinha berço nem base para enfrentar aquele nível de conhecimento sem que fosse a troca de um considerável esforço extra. Falava errado, escrevia pior e foi vítima de galhofas. Não revidava era de boa índole, e sequer percebia algumas maldades em seu entorno. Não conseguiu passar no vestibular em suas primeiras tentativas, pois era muito fraco para competir em tom de igualdade com o pessoal da elite. Na terceira vez em que já estava quase decidido a mudar de rumo em sua tentativa para medicina - já até se inscrevera para administração, curso considerado de mais fácil aprovação – conseguiu finalmente. O curso, no entanto, não foi condescendente com ele, precisa de livros caros e sua atividade empregadora – era atendente em uma lanchonete – não lhe dava condição suficiente para comprar obras tão caras. Virava-se como podia, mas não foi o suficiente, foi reprovado no primeiro ano e viu sua turma ir em frente.

Morava sozinho, pois seu pai o havia abandonado quando fora encarcerado, injustamente ao ser flagrado consumindo maconha. Sabia que tinha sido preso por que era pobre e precisava fazer número às vistas das “otoridades”. Nunca chegou a conhecer sua mãe, pois ela sumiu ao dar-lhe à luz. Mais tarde, soube que já estava morta, mas não sabia ao certo onde havia sido enterrada. Era sua missão, um dia queria descobrir os verdadeiros fatos. Alguns, inclusive o pai – um sujeito severo e grosseiro – haviam lhe dito que fora uma doença terrível a levara e que até por isso a fizera ter razão para o abandono.

Mais tarde ao chegar quase no fim do curso de medicina – faltavam exatos oito meses - foi obrigado a abrir mão do sonho, estava encalacrado em dívidas contraídas ao longo dos anos. Nesse momento já exercia o cargo de gerência de uma distribuidora de roupas o que lhe obrigava às constantes viagens – outro forte motivo que o impedia de cursar a faculdade, pois eram constantes as faltas. Sanou suas dívidas após largar a medicina em quatro anos. Sempre fora amoroso com suas namoradas e companheiras por toda a vida, praticamente se doava aos seus bel-prazeres, via naquilo uma amostra do amor verdadeiro e romântico. Fora também enganado na maior parte das vezes por mulheres ambiciosas que se aproveitavam de sua ingenuidade e bondade. Corno era uma palavra forte, mas que estava muito presente no seu dicionário, se contentava em saber que nessas aventuras amorosas, a culpa poderia ser até sua, mas nunca tinha sido forma deliberada. Que os rompimentos diante das deslealdades embora lhe doessem não tinham sido fruto de uma ação sua. Afinal quem havia cruzado a linha da falta de caráter e do desengano não fora ele.

Vivia de forma simples, e sua ascensão profissional conseguira dar-lhe um conforto maior, já conseguia alugar um pequeno apartamento – morou durante anos em um quarto nos fundos de um sobrado pouco amistoso no centro da cidade. No entanto, um ponto de frustração lhe abatia, com sua mudança de ambiente, novas companhias também foram sucedidas. Nas novas rodas de amigos, era o único a não ter completado os estudos e ter uma profissão.

Decidiu então ser advogado, pois a medicina infelizmente o deixara para trás e não estava disposto a ter frustrações de reiniciar tudo novamente, sua idade também já era um empecilho e o mercado de trabalho na área médica – cirúrgica - era cruel com pessoas mais velhas sem experiência. Formou-se depois de quatro anos exatos – já estava mais adaptado ao ambiente de faculdades e a confiança não mais lhe fugia. Em função do mesmo problema da medicina, não conseguia exercer sua profissão e se encaminhou para o setor público, prestou concursos e logo se tornou juiz. Muito competente e com um senso de justiça e ética muito grande colecionou inimigos ao não aceitar conchavos e propinas. Em uma tarde a frente de muitas pessoas conhecidas sofreu um atentado que quase o matou – por sorte não lhe atingiu mais gravemente – mas tirou-lhe quase que totalmente o movimento de uma das pernas. Incidente que lhe deu – por forças “ocultas” – uma condição de aposentado por invalidez. Mas o que mais tinha deixado com choros e tristezas no coração foi a conclusão a que chegara. Enquanto ativo e possuidor de status e poder muitos amigos os tinham na mais alta consideração. Ao ser colocado – contra sua vontade – fora do serviço público, sumiram. E até alguns presentes na tentativa de assassinato sequer testemunharam a seu favor. O réu era conhecido e nunca foi definitivamente condenado pelo fato. Era um empresário, rico, mas nem tanto, contudo tinha uma série de pessoas no judiciário comprometidas com ele.

Passaram-se os anos e tratou de esquecer os ocorridos, pois não valia a pena. Isso só lhe fazia mal e não tinha efeito prático algum. Decidiu-se a pintar como hobby e vez por outra convidava alguns remanescentes amigos para sua casa a fim de trocar conversas e mostrar suas pequenas grandes obras. Era possível perceber nelas seus tons de amargura, mas não em suas ações. Pessoa alegre, comunicativa e com muitos carinhos com quem quer que seja. Aos amigos nem se fala. Parecia que transportava tudo que tinha acontecido ao longo de mais de sessenta anos para as telas. Ali estava impresso a parte ruim dele, a tristeza, o desvanecimento, a melancolia, o descrédito com parte da sociedade e os rancores.

Mas, ao se tratar com ele se via que não tinha mágoas, só guardava alegrias, por isso permanecia sempre com seu rosto envolto num sorriso. Escondendo o que a vida tinha lhe preparado.

2 comentários:

Anônimo disse...

A arte quase sempre foi uma maneira de se escapar da vida; ao menos, boa parte dos artistas verdadeiros produziam para esquecer.

Mas teu conto fez-me pensar que viver é também uma arte; teu "jovem de sessenta e quatro anos" é um homem que aprendeu uma lição que poucos conseguem por em prática - dar importância àquilo que é realmente essencial. O "dar a outra face" a que se referia o Cristo jamais foi ato de covardia, mas de sabedoria.

Em tempos como os nossos, contudo, em que as pessoas não tem qualquer resistência à frustração, qualquer capacidade de renúncia, em que "todos são campeões em tudo" - como dizia Fernando Pessoa -, quantos de nós aprenderemos essa mesma lição?

Carlos Zev Solano disse...

Oi Amigo,

obrigado mais uma vez por abrilhantar o blog com suas visitas e comentários.
Chegará o dia em que os verdadeiros homens serão os dotados da essência da humanidade e que abrirão seus corações a quem precisa.
Os vencedores são os que sabem viver, não os ganaciosos que vivem sempre em busca de mais um quinhão

Abraços.